Contando Histórias

Contando Histórias

 

                                       feliz

 

Cena 1: Paisagem exuberante, muito verde. À margem de um riacho, numa árvore florida, um pássaro canta alegre e feliz.

 

Cena 2: Um garoto chega debaixo da árvore carregando em uma das mãos uma gaiola; olha para cima, para o pássaro e pendura a gaiola no galho; vai até o riacho, agacha-se e lava as mãos e o rosto.

 

Cena 3: O pássaro levanta vou e, depois de pousar perto e ver a isca (banana) no interior da gaiola, entra. O garoto chega e, rapidamente, fecha a portinhola. Afasta-se levando a gaiola.

 

Cena 4: Uma casinha de taipa, coberta de palha. A gaiola está presa na parede. Dentro, o pássaro está caído inerte. Sentado sobre uma pedra, a alguns metros, triste e desolado, o menino observa o horizonte avermelhado. Tira o chapéu de palha e o coloca ao lado.

 

Cena 5: O riacho seca lentamente. Ao lado, a caveira de um boi aparece. As árvores perdem as folhas. Agora céu está bem avermelhado. Paisagem de muito sofrimento, seca.

 

Cena 6: O garoto levanta, tira o pássaro da gaiola e o coloca sobre a pedra. Incentiva-o a voar. Depois de tentar várias vezes, o bichinho levanta voo. O menino o olha aliviado.

 

Cena 7: O pássaro pousa novamente na galha da árvore. Começa chover. O riacho começa encher. Ao mesmo tempo, a árvore vai ganhando suas folhas verdes, as outras árvores também.

 

Cena 8: Paisagem exuberante, muito verde. À margem de um riacho, numa árvore florida, o pássaro canta alegre e feliz. Bois pastam na relva muito verde.

 

                                         fim

 

                                                                                                 caveira

Falamos e fazemos isso por aí!

 

          Rosinha, como era conhecida, era a mulher do fazendeiro Otávio. Já havia rodado o mundo se exibindo para públicos das mais diversas categorias. Ex-bailarina de boates, havia ali se socado por amor a seu homem, que lhe arrebatara o coração dançando agarradinha com ele no baile de comemoração do centenário da capital. Era feliz.

Para agradar a seu amor, o capitão Otávio, neto de um coronel da antiga Guarda Nacional, comprara-lhe um potro, que ela de pronto colocou o nome de Periquito, quem pode entender a cabeça das mulheres?!

           Pe-ri-qui-to! Já estava cansada de soletrar, mas não era assim que João, o tratador do cavalinho, vaqueiro da fazenda, o chamava. Na sua boca, o Periquito era sempre o Priquitim de D. Rosinha. Tomara-lhe grande apego. 

          - Mais cumé que a sĩora vai me botá eche nome no pobre do bichiiinho!?

          Questionava ele, fazendo boca de riso.

          – Priquito é aqueles passarinzim que faz zuada comeno manga no pé, dona!

      Ela se indignava! Nos cabarés na capital, aquela palavra, lembrou-se, tinha um significado bem diferente.

         - Seu diabo! – brincava. - Não é Pri-qui-to, isso aí é palavrão, é uma imoralidade!

       E falando baixinho para ele, ocultando parte da boca com a mão, depois de olhar para os lados e depois para Otávio, fingindo desconfiada:

         - Priquito quem tem é a Maria Lúcia! - E alto novamente - O nome do meu potro é Pe-ri-qui-to!

         Maria Lúcia era a mulher de João. Bunita e facêra, nas palavras dele.

         - E quando estiver fumando esse tabaco horroroso, medonho, toma cuidados. Não fiques perto dele – admoestava o seu já amigo, em tom de brincadeira, D. Rosinha.

         - Vixe, Maria Santísma! Eu num fumo isso não, D. Rosĩa! – e baixinho, imitando a patroa – Tabaco quem tem é a sĩora! Nóis fuma é paurronca! – sorrir.

         - Olha o respeeeito, João!

         O capitão ouvia tudo sempre com bom-humor. Conhecia bem a ignorância de João sobre as questões de uso da língua, mas também reconhecia sua pureza de intensões. Divertia-se muito com aquelas contendas. Estava apaixonado! Contudo, jamais casou! Não tinha amarras, o homem. Era livre para gostar... desgostar... sorrir...

         Ao lado das terras do capitão Otávio, o Pedra-do-Fidalgo, ficava o Jabará, terras do usineiro pernambucano Ernesto Elizário, homem temido e muito conhecido na região pelas encrencas em que se metia com os outros fazendeiros por mandar matar todos os porcos, bois, jumentos e cavalos, inclusive os dos vaqueiros, que penetravam em seus canaviais. Os empregados da usina contratados no Pernambuco, boatos corriam largo, comiam a carne notadamente dos jegues que matavam. Um horror, achavam os nativos! Mas também o usineiro era conhecido por seu enorme aras que mantinha. Uma das éguas de Ernesto Elizário, a Realengo, já havia vencido o Grand Prix do turfe estadual.

        Uma manhã daquelas em que o homem acordava um limão, quase sempre era assim, vistoriando seus vastos canaviais, Ernesto Elizário viu uma coisa que o estarreceu: Não podia acreditar naquilo que via! O Periquito, um cavalo labrador, cruzando com Realengo, sua égua árabe puro sangue. Como aquilo podia estar acontecendo?!

    Mais que depressa, colérico, gritou aos berros para o capataz, que sempre o acompanhava carregando seu inseparável papo-amarelo:

         - O que está esperando, homem? Atire nele!

       - É mior não, patrão. Esse aí é o Priquitim. O pessuá fala que é presente de Seu Otávo pra D. Rosĩa. O home é capitão!... – ponderou Chicão, o capataz, espichando o tão do capitão.  

        - Para mim, é merda escorrida no vaso! Escorrace-o, então, imediatamente para fo-ra das minhas terras. Não o quero mais ver por aqui! – ordenou.

       - Assim, sim. Aquela muié num é fáço não. Quem num cũiesse o Capitão, inté pen-sa que ela manda nele! – diz Chicão, tocando o cavalo e dando gargalhadas.

       Alguns minutos depois, pronto. A liberdade ganha e o namoro, recém iniciado, ti-nha acabado. Ré, como era carinhosamente chamada, estava de novo na baia com os outros cavalos do aras.

     De volta ao escritório, onde passava os dias organizando os negócio da usina, dispensou o tratador. Estava com a pele avermelhada, o nariz amarelando. Não quis o prato que a preta Genoveva, mulher de Chicão, para ele prepara no almoço. À tarde, chamou Chicão de volta ao escritório e o enviou à fazenda de Otávio: agendar uma reunião com o vizinho. Aquilo não podia continuar. Ré prenhe de um cavalo sabe-se lá que origem!

     À noite, sozinho, bem relaxado na cadeira preguiçosa posta na porta de casa, admirando as estrelas, Ernesto Eliziário se indignava: “... e se vingou?... atiro pessoalmente na cabeça do diabinho logo depois que ela parir! Olha só o prejuízo que vou ter quando souberem que minha égua cruzou com um cavalo sem raça!...”

         Logo no dia seguinte, um sábado, reuniram-se o capitão, neto do coronel da antiga Guarda Nacional, com o usineiro pernambucano, em uma churrascaria no centro da pequena cidade-sede do município.  Rosinha foi junto, não quis ficar em casa e fincou o pé, na hora que soube do encontro:

         - Se é sobre o Periquito, quero estar presente.

         - Mũto bem, D. Rosĩa, num deixa aquele usinêro mexer com seu Priquitim, não! – exclamou João - Mais bote côidado, aquele traste num presta!

E no momento da saída:

        - Não vá me arrumar confusão, Rosa! Pode deixar que eu me entendo com ele – ponderou Otávio, enquanto colocava os coturnos.

          - Não leva o diabo desse revólver, Otávio! Não quero ninguém morto! – suplicou Rosa, abraçando seu homem.

      - Eram meus velhos que assim resolviam seus perrengues. Hoje tem a justiça, mulher!

         - Então pra que ainda guarda aquilo? – interrogou.

         Otávio preferiu ficar calado.

        E lá se foram os dois ao encontro de Ernesto, montados em um único cavalo: ele de terno e chapéu brancos, ela de garupa, guarda-sol colorido aberto sobrea cabeça. O Periquito somente quem o montava era Rosinha, em ocasiões escolhidas por ela.

       Na churrascaria, foram recebidos de pé por Ernesto, que já se adiantara e pedira uma suculenta picanha. Certamente para mostrar poderio.

        - Mas o que ela veio fazer aqui!? Essa é uma conversa entre homens! – quis mes-mo ser indelicado.

      - Ela, não. Dona Rosa! – corrigiu Otávio, ajeitando a cadeira para Rosinha - O senhor é um homem educado, tenho certeza – completou.

         - Eh... o Priquitim é dela! – lembrou João, que também tinha ido acompanhando os patrões, a pedidos insistentes de Rosinha.

         - Acho que é isso mesmo... – sussurrou, com ironia, o usineiro.

         - O que disse?... Não ouvi bem. – perguntou Otávio, em tom ameaçador.

         - Nada, não. – disfarçou Ernesto.

         - Qual é mesmo a razão disso aqui? – Rosinha foi direta.

         - Todos aqui sabem da importância de minha usina para esta região. Empregamos meio mundo de gente. Não admito animais destruindo meus canaviais. – Foi incisivo, o usineiro. - Além do mais, ele estava cruzando com a Ré:  minha égua puro sangue!

       - Como diz o ditado por aqui: prenda sua égua, que meu potro está solto. Disse Rosinha, em tom de deboche.

       - Éh, o pessuá tá falano que o sĩor da de cumer seus trabaiador cum a carne dos bicho que eles mata – interveio, João.

        '- Por favor, João, não se meta na conversa. Olha o que conversamos em casa! – retrucou o patrão.

         E voltando-se para a mulher:

         - Eu disse para não trazê-lo conosco.

     - Não sei nada disso, mas vou tomar minhas providências, caso esse pangaré miserável apareça por lá – afirmou Ernesto, irritado.

         - Alto lá! O meu Periquito não é pangaré. Ele é capaz inclusive de vencer sua égua numa corrida – desafiou.

        - Qual nada! Vamos ver, então. Vamos fazer uma aposta: se minha égua ganhar,  no dia que o pangaré for apanhado em minhas terras, quero o direito de matá-lo – disse Ernesto, torcendo o vasto bigode.

         - Não é justo, o cavalinho não é treinado para correr em Grand Prix, como a égua dele. Vamos perder – cochichou Otávio no ouvido de Rosinha.

         - Vai, D. Rosĩa, aceita. O Priquitim aguenta. – incentivou, João

       Rosinha levantou-se bruscamente da cadeira, empurrando o prato de comida para longe. Estava avermelhada, parecia um pimentão maduro.

         - Está acertado. O Periquito vai correr e vai ganhar.

         - Isso é doideira, mulher. Você vai matar seu cavalo – disse Otávio, irônico.

         - Isso, D. Rosĩa! – apoiou João, aplaudindo. Seu Priquitim vai botar é pra lascar.

       - Pois bem, no próximo domingo, passando o de amanhã, é vinte e um de abril.  Está bom para vocês? – quis saber, todo cheio de si, o dono da Realengo.

         - Tudo certo. – concordou a dona do Periquito. Mas tem uma coisinhas ainda.

         - Tudo que quiser, segunda-feira mando limpar o autódromo – disse Ernesto, já se preparando para deixar o lugar. Vamos, que coisinhas são essas?

       - Primeiro, a corrida não vai ser no autódromo coisa nenhuma, vai ser sim na mi-nha fazenda, por dentro do mato, como fazem os vaqueiros.

     - Absurdo! – esbravejou o homem – onde já se viu, uma égua puro sangue, ganhadora do Grand Prix estadual, não é cavalo de vaqueiro.

       - É pegar ou largar. Segundo, se meu Periquito ganhar... você permite ele cruzar  com a Ré durante um mês, na fazenda.

         - Está certo, o pangaré não vai ganhar mesmo!...

         Otávio só ouviu a conversa. Às vezes balançava a cabeça em um misto de negação e incredulidade. Mas era um homem resolvido. Não estava preocupado, somente com as reações de sua amada, se o Periquito dela um dia voltasse a pular a cerca do vizinho. Que o Periquito ia perder, disso ele tinha certeza.

       Chegou o vinte e um de abril. Rosinha, não se sabe se por nervosismo, caiu em febre profunda. Não pôde comparecer, mesmo a pista tendo sido traçada a poucos metros da casa grande. Um moleque esperto, filho adotivo de João, fora o escolhido para montar o Periquito de Rosinha. Otávio foi conferir para que não houvesse coisa errada e todos os trabalhadores das duas fazendas foram torcer.

          - Logo que terminar, Joãozinho, você corre vem me dizer quem ganhou – disse ela confiante.

         No final, depois de cinco baterias, os jóqueis correndo por entre flores e espinhos, infelizmente, nenhuma surpresa: ganhou a égua Realengo.

       João, como a patroa havia pedido, saiu em desabalada carreira direto paraa casa grande da fazenda.

Gritava pro mundo todo saber:

      - A Ré ganhou o Priquitim de dona Rosĩa!... A Ré ganhou o Priquitim de dona Rosĩa!... A Ré ganhou o Priquitim de dona Rosĩa!

       Que coisa, hein!? Depois disso, Ernesto Eliziário, Otávio e Rosinha se tornaram grandes amigos, frequentemente eram visto juntos no único clube da cidade. Não se sabe se o usineiro cumpriu a promessa de matar o potrinho, filho de Realengo. João cuidou para que Periquito nunca mais pulasse a cerca do vizinho.

         É isso.

 

caveira  

 

Aquarela

 

            Era escura a minha mente. Via apenas o que meu olho queria ver no instante: uma vala suja, molhada de restos de verduras podres. Fediiiia... Pensei: “É este o lugar ao sol que tanto procurava? Que vergoooonha!’ O filho de D. Antônia ali, no lixo! Cabeça balançando negativamente... mais uma de minhas crises de depressão?

            Depois de vagar pelas ruas da cidade chuvosa, havia resolvido parar e descansar. Uma igreja seria o lugar desejável. A primeira que encontrei com as portas abertas, nela entrei. Dentro, crentes fervorosos pareciam buscar o manar sagrado para o animus. Encontraria para o meu também, imaginei. Afinal, os bastantes procuradores do Mestre, arquiteto do Universo, sempre afirmaram ter ele riquezas bastantes no coração?! Na hora da distribuição, sobraria alguma nesga de retalhos para Minh ‘alma infeliz. E quando a chuva cessasse e todos se retirassem, delirei, um velho padre desceria do altar como um anjo bom e me diria carinhosamente: “Filho, observei tua adoração ao Senhor e senti verdade em tuas preces. Qual o motivo de tanta aflição que ora vejo em teu semblante cansado?”

            A quem eu, cabisbaixo, responderia: “Meu bom pastor, minha vida é uma vereda sem fim. Impossível saber aonde ir hoje, como não soube ontem, quando fez sol, como certamente não hei de saber amanhã, será que vai cover? O pouco que sou, senhor, está perdido no muito que são todos vocês. Responda-me, bom homem, quando o Senhor trabalhava, ele sabia mesmo que  mundo estava construindo?”

            E transbordando muita paz, paixão e sabedoria, acariciando-me a cabeça, diria: “Filho, o mundo só é belo porque existe essa incógnita criada pelo Senhor, para a qual, individualmente e coletivamente, todos nós temos a obrigação de buscar um significado.”

            “Mas padre,” eu replicaria, “como posso buscar tal significado se até a mim mesmo desconheço!?”

            Ele então daria o xeque-mate da sabedoria, dizendo: “Pois mergulhe fundo no seu próprio eu, procure encontrar seu vazio mais profundo, deixe-se cair, permaneça assim o quanto for possível e preciso. E quando se levantar, verás que o Senhor não te abandonou, e que ele te carregou nos braços. E com certeza, hás de ter encontrado um significado para o teu mundo. O mundo de cada um é um todo particular parte de um todo maior caminhando juntos.”

            Agora, cá entre nós, que vivemos no mesmo mundo, este seria um papo bem kungfuriano, o senhor percebe? Ou não é dado à intelligentsia chinponesa? Ahn!... já prossigo. Antes, deixe que eu diga que quem veio falar comigo foi o coroinha, um homem já bem velho, por sinal. Para falar a verdade, eu nem sei se falava comigo mesmo ou se recitava uma oração.

            Esporrado, deitado em um daqueles bancos de madeira, sem forças para me levantar, sentia a dor de cabeça: puxa vida, como doía! Aumentava a cada lembrança que me chegava à memória. Aquele lugar era imundo. Apurando mais a vista para enxergar melhor, voltando a cabeça um pouco para minha direita vi, como uma estátua à minha frente... ela própria, a rainha noite chegava desacompanhada de qualquer estrela. Puxa, meeeerda! Que horas seriam aquelas?

            Neuzinha era uma negrinha no alto de seus dezoito anos bem usados. Trazia o corpomolhado num vestidinho curto, a ele colado, o que fazia suas formas de menina quase mulher, bem delineadas, saltarem aos olhos de quem as via. Vinha do rio. Estávamos à beira do rio, próximo ao cais, agora eu sabia. Onde as verdureiras, quase sempre danadas da vida com os prejuízos tomados, atiravam as sobras podres da venda do dia. Neuzinha era uma catadeira, como era um sem número de outras negrinhas miseráveis. Ah, os negros... um dia ouvi alguém cantar...

            Fiz uma cara feeeia para a negrinha e ela, ao contrário do que eu esperava, sorriu. Vi que o sol ainda lambuzava o firmamento com seus últimos avermelhados raios. A paisagem estava perfeita: um louco sujo de verduras podres e um corpo negro apetitoso, os dois a sós em uma grota fedorenta e imunda. Não podia acreditar. ”Devo estar viajando de novo!” pensei, atolado na lama. Seria possível aquele cabeça pelada ter mesmo razão? Nããão, não poderia. A vida é e será sempre o negativo daquela aquarela pintada por aquele pintor maluco por mim desconhecido que vi exposta nos fundos daquela igreja. Que sujeito maluco, rapaz! Onde já se viu pintar as pessoas de cores diferentes da que são?! Acho que ele viajou nessa questão do racismo. Um homem verde, um amarelo, um azul, outro branco, um vermelho... O miserável pintou até um homem veeerde! eu não esqueço isso. Pura intelligentsia hulkiana verdamericana.

            Um marimbondo de fogo pousou suavemente em minha perna e violentamente me espetou. Na pude ou quis fazer coisa alguma contra aquele pobre ser. Sacanagem!... Jamais eu poderia estar retratado naquela tela maluca. - tomei consciência. Maluca... mas incrivelmente linda, diga-se de passagem. Somente uma mente doentia como a daquele maluco poderia ter pensado a humanidade de maneira tão maravilhosamente bela. Foi diante daquela tela que confessei: Sinto o vazio roer minhas tripas: quero comeeer. Ai! A! AI! AI! Ai! Aaaai!... já compreendi... já compreendi... comer aqui só taca... não, não, não interrompo mais, certo, certo!. Meu Deus! Eu...

            De repente tudo começou a voltar ao começo: a negrinha foi se multiplicando em um turbilhão de outras. E o estranho é que era de múltiplas tonalidades. Era como na televisão, esta intelligentsia o doutor conhece, não? Um jogo de imagens fantástico. Era a tela que crescia e confundia meu fatigado olho. Por que não usava óculos escuros? Uma bibiana girou sobre suas cabeças, iluminando-as uma a uma. No final da projeção... apaguei. Era o fim.

            Na igreja, cheia de candelabros e castiçais de ouro, eu sabia, assim que o coroinha me deixou a sós, veio sobre mim um padre velho e, em vez de passar suavemente a mão por sobre meus cabelos, como instantes antes sonhava, levantou-me aos solavancos pela gola da camisa. Ao seu lado o zelador da igreja sorria às bandeiras despregadas. Fiquei assustado, olhando-os sem saber o que dizer:

            - Mas o que é isso, que você está dizendo, seu vagabundo miserável? Ponha-se já aqui para fora! - disse nem que eu tivesse pronunciado uma única palavra.

            - Você pensa que a casa de Deus é albergue de bêbados e vagabundos? Vá tomar um banho, se limpar. Está fedendo!

            Entregando a gola da minha camisa ao zelador, disse aos gritos:

            - Devolva esse vagabundo pra rua, que é o seu lugar!

E virando-me as costas, fazendo o sinal da cruz:

- Esse pessoal não tem jeito: Deus me livre e guarde!

            E assim fui atirado para fora da igreja, a sempre muito limpa e majestosa casa de Deus. Então, já em nada para mim adiantava a antes tão preciosa intelligentsia divina.

            As imagens começaram a clarear. Um cheiro forte de feijão aferventado com azeite de coco – o doutor conhece, chegou ao meu nariz. Era horrível, jamais suportei cheiro de comida fazendo. Sentada ao meu lado, docemente uma mulher me pastoreava.

            - Gosta de mingau de milho? - perguntou-me.

            “Mas o que diabos estava acontecendo ali”, pensei comigo mesmo. “Eu sentia cheiro de feijão e ela me oferecia mingau de milho?!” Levei as mãos aos olhos e os esfreguei fortemente. Inacreditável! Tudo estava novamente acontecendo. Aquele maldito quadro continuava vivo em minha mente. Sujeito maluco, aquele: pensar a humanidade toda colorida que nem bandeira de país africano... um homem branco dentro de um azul dentro de um verde dentro de um amarelo... veja só, pensar todos eles se relacionando pelas cores. Era mesmo muita piração!...     Mentira, tudo mentira...

            Mirei o adiante, por detrás das costas da mulher, que então se havia levantado e sentado à minha frente, no lado oposto da sala. Por uma estreita porta, vi no fundo da cozinha imunda as labaredas de fogo queimando o ferro preto da panela. Devia ser a do feijão.

            - Como vim parar aqui? - eu quis saber.

           - Se quer mesmo saber, sorriu faceira, você toma uns porres fortes, hein! Posso te assegurar que, fora o trajeto que fizemos de canoa, veio em cima das próprias pernas.

            - É sua casa? – perguntei meio desinteressado.

            - Se agente puder chamar isso de casa... mas não precisa ficar machucado no seu orgulho de macho, não! Não aconteceu nada demais.

            Falava estranho para quem vivia naquele... estado de mundo de miséria, vamos dizer assim.

Levantou-se, aproximou-se de mim outra vez e, olhando-me fixamente:

            - Que santa tem aturado você? – ela então quis saber.

            - Nós, os loucos habitantes deste mundo pirado temos sempre mesmo que viver com alguém? – respondi meio sem querer, olhando para o piso de chão batido do barraco.

            - Eu moro só, com minha filha: sou a mãe da Neuzinha. A turma me chama de Roxa. Pode rir, se quiser, só não me pergunte o porquê dele.

            Fechei os olhos e voltei o pensamento para trás. Aos troncos e barrancos havia descido os degraus da escadaria da igreja. O sol rachava meu cérebro. A garganta secou. Precisava chegar rapidamente ao Altar, onde o sacerdote dos pobres, loucos e lazarentos celebrava todos dias a cerimônia da pinga e da alegria para todos. O doutor sabe onde fica o Altar?... desculpe-me, outra vez!

            Chamávamos Altar à vendinha de cachaça do Assis, dentro do mercado central. Na verdade, era apenas um biombo, um caixote alto de madeira com uma pedra plana sobre. Dentro, ele guardava todas as misturas de cachaça que fazia a alegria dos catadores de restos, peixeiros, verdureiras, magarefes e toda raça de gente miserável que, de alguma forma, sobrevivia do velho mercado central. Lá, todos afogavam suas mágoas, sem censura.

            Aquele lugar era um oásis de verdades dentro da farra de babaquices que cobria a cidade. O Assis sempre tinha um remédio pronto para as minhas nossas crises existenciais: misturas com cascas de laranjas, com pedacinhos de goiabas, de abacaxis... Dinheiro, para quê? O bastante era um cumprimento amigável e uma boa conversa fiada na política nacional. Um professor aposentado, um outro ainda na ativa... um fiscal da Fazenda, um funcionário público da Administração e um outro do Departamento de Obras e Vias Navegáveis. Formávamos um grupo muito estranho aos olhos assustados dos inocentes outros fregueses do Altar. A família?... bem, a família... deixa pra lá. Abri os olhos com medo de continuar.

            O que vi com o olho aberto foi aterrador: Neuzinha, o senhor lembra? em pleno cio, caía sobre meu corpo. Seus dedos, leves como pluma, acariciavam-me as coxas. Gargalhava muito. Pura loucura. Sua imagem se transformava, se desbotava. O espaço também. Eu descia ao fundo da grota construída pelo uso contínuo do colchão e ela sorria do alto. Dos barrancos parecia chegar muitas gargalhadas. Tínhamos toda uma plateia nos observando o que fazíamos. Meu olho era o da abelha: as imagens se sucediam com incrível velocidade. Como já ocorrera com Neuzinha na grota, Roxa se multiplicava por toda aquela multidão multicor sorrindo às bandeiras tremular. Homens, mulheres, adultos, crianças... todos possuíam o mesmo rosto de Roxa, olhando-me do alto. Todos das mais variadas cores. Sorrindo. E eu. Eu chorava. Por quê? Quis ter um espelho, quis ver meu rosto, quis gritar. O grito ficou sufocado sob aquela aquarela de gargalhadas. Triste, morto, entendi: eu estava triste e morto. Surgiram luzes, uma infinidade delas. Roxa vestia-se de roupas branquíssimas, agora. E lentamente se afastava para longe de mim. Eu sofria dores e ela sofria mutações. Possuía barbas e cabelos longos. Minha visão era nublada. Roxa era Jesus?... Roxa é o.... apaguei... Foram minutos assim.

         Quando acordei, a negrinha estava lambendo-me o cangote, como uma gata ao filhote. E já erguia o corpo sobre o meu, completamente nua. Seu corpo brilhava com o suor e era lindo demais. Ajeitei a calça e a camisa, apanhando-as no cabide de madeira.

            - Puxa, você é mesmo maluco.

           “Maluco, eu?...” pensei. Maluco era aquele pintor. Mas deixe-me voltar à questão do Altar.

            - Quem é o barbudo que está ali encostado no portão, perguntei interessado. - É novo aqui, não? Parecia ouvir nossa conversa, eu falava do que passara e vira na igreja. E todos ouviam, pareciam interessados.

            Era um estranho no ninho, eu conhecia todos dali. Era o homem do sonho, como ele mesmo se intitulava, soube depois. Eu diria melhor... rotulava. Seu remédio, diziam, era fortíssimo. Ele afirmava, como pude comprovar mais tarde, que com seu produto a gente via o que queria ver e somente aquilo que queria ver. Talvez fosse o que eu procurava.

            - Desocupe sua cabeça, companheiro, disse-me à saída do Altar, quando já me retirava.

            - De novo, doutor, como é difícil o senhor compreender as coisas, hein?! É claro que o Altar não era altar. Era a venda de pinga misturada do  Assis. Agora quer me deixar continuar?

            Pois bem, ele disse que poderia entregar Deus em minhas mãos, com aquele remédio. Falando, o homem era o próprio Pilatos lavando as mãos, aquele da Bíblia. Aquela que fazia meu pai, sentado na rede de tucum, chorar rios de lágrimas ao ler a história da Maria Madalena, na Semana Santa. Que era só quando ele a lia.

            - Veja você -, disse, muito ao contrário do que falam todos os religiosos, a imagem de Deus que temos hoje não é bem verdadeira.

            Nessa altura da conversa, ele já me seguia pelo mercado como um carrapato colado ao corpo do animal.

            - Os padres e os pastores sabem disso -, insistia, em sua catequese. Sabem mas escondem a verdade. É bom para eles. Alimentando essa mentira a Igreja e eles próprios e todo o mundo religioso crescem aos nossos olhos. Imagine você: somente eles, pretensiosamente, podem conversar com Deus diretamente. E nós temos que nos contentar com um péssimo serviço de mediação. E se o mediador for desonesto, vamos, como ficamos? Sim senhor! Acredite-me, Deus é árvore que dá frutos reais. Não de mentirinhas como as que contam os religiosos. Você está errado se pensam que eles o adoram; eles o invejam e o temem. Na verdade, nós podemos plantar, cultivar, comer, beber, fumar, cheirar e, até mesmo, injetar Deus diretamente em nossas veias.

            Precisava ver, doutor, a capacidade com que falava aquele barbudo. Falava e ficava empinado que nem galo na chuva. Já sei já sei já sei. É desnecessário lembrar-me. Como? O doutor não é macho? Desculpe-me, então. É o que mesmo... o que disse? Ah!... não interessa. Certo.

            - Que pílulas são essas que você traz aqui no bolso da camisa? - perguntou Roxa, enfiando a mão. Será que elas servem pra esta estribaria que tenho aqui comigo? – apontando para o entrepernas.  Puts grila! você não gosta mesmo de falar – reclamou. Vamos fazer o seguinte: vamos tomar cada um três dessas. Você pode continuar calado. Eu não me importo. Mesmo que seja veneno.

            E voltando-se para a filha:

            -           Vai ver ver o feijão, Neuzinha! Não deixa queimar.

            Coloquei a mão sobre o peito, como protegendo o bolso:

            - Não, é perigoso! rosnei.

            Quando Neuzinha saiu, Roxa continuou falando sem parar:

- Uma vaca a mais ou a menos dentro do curral é indiferente para mim. Dentro da barriga, isso só ajuda matar a fome. Vamos... já engoli as minhas! Tá bom tá bom. Deixe que coloco cada uma em sua boquinha, assim... muito bem! 

            - Droga!...lembrei a persistência do barbudo. Ele me enjoava, mas eu gostava e queria experimentar o que ele tinha no bolso.

            - Você desconhece a estória de Sant’Antônio Pequenino? - perguntou-me sem dar tempo a uma resposta.

            E continuou, fingindo impaciência:

- Pois é, até santo só trabalha com arrocho. Aliás, todos os santos são uns preguiçosos. Vou fazer um favor a você. Para fim de conversa: tome, aqui está seu Deus lapidado. - disse-me, estendendo um saquinho plástico - Este é o melhor, mais fácil e de trato eficiente. Viaje com ele e depois diga... eu tenho um deus dentro de mim. Eu encontrei Deus...

            Droga! Maldito barbicha de bode. Mil vezes maldito!...

            Não, não. Eu?... confuso? Quero apenas dar o quadro e a estória geral dos fatos. Arrependido de estar contando? E eu tinha opção?! Às vezes o doutor fica engraçadinho, não?!

            No barraco da Roxa tudo voltou a acontecer depois que engolimos as pílulas. Roxa dançava só para mim. E como era maravilhoso vê-la dançar!... primeiro na areia  molhada e achatada do barraco, depois sobre uma mesinha de pouco mais de três metros de comprimento por dois de largura. As roupas caíam do corpo como o algodão em capucho levado pelo vento. Duas e mais duas bolas-de-gude. Já eram várias Roxas a dançarem só para mim. A visão era magnífica! As imagens se confundiam em minha mente. Roxa era uma menina... era uma mentira... era uma senhora. Em sua mão direita surgiu, repentinamente, um relho. Meu Deus do céu, o relho se transformou em uma enorme cobra. Roxa dançava com a cobra enrolada na cintura. Chamava-me. Gritava por mim. Ela pedia ajuda. Ela sorria. A cobra crescia... Levantei-me com os músculos contraídos. Em minha mão esquerda surgiu uma espada samurai: era luminosa e brilhava como o sol. Abri mais ainda os olhos, que teimavam em fechar, para tentar acabar com a dúvida de meu espírito. Roxa sorria ou chorava; convidava-me a dançar ou pedia minha ajuda? Era tudo muito confuso naquele instante. Era como na TV: as imagens indo e voltando, o doutor compreende, né? Como eu podia ter a certeza de alguma coisa?...

            As ideias quebravam em minha cabeça e se misturavam. Diziam-me para me deixar envolver; permita-se pensar...

            Um grito tapou meus ouvidos: socoooooorro!... socooooorro!... mamãe!... No fundo, uma voz dizia: deixe-se envolver, não resista, você se torna o seu próprio dono... mamãe!... Socoooorro!... Socooooorro!... socooo... e foi isso aí. O resto o doutor já sabe, não? Chega, chega, chega, chega, não precisa zangar. Eu continuo sim.

            O dia seguinte amanheceu eu vagando pela beira do rio. Sobre as águas, a neblina fria passeava lentamente. Naquela noite havia feito muito frio eu precisava me aquecer no sol que começava a aquecer a cidade e a dourá-la, também. Perguntava-me se de fato havia acontecido o que aos poucos me chegava à lembrança. A resposta foi um jogo de incertezas. Não sei.

            - Essa estória de crime, rapaz, é sempre muito complicada. - disse o fardado. Começa tudo de novo. Você engoliu a pílula e...

 

caveira

 

Crepúsculo

 

               Ocorreu quando cursava a última disciplina do curso de pós-graduação em Língua Portuguesa, na segunda-feira seguinte àquele malfadado sábado em que a Seleção Brasileira de Futebol perdeu a Copa do Mundo de 1986.

               Já havia alguns dias se sentia mal, pensava serem simples dores estomacais. Por isso tomava comprimidos de leite de magnésia bisurada. Quase nem prestara atenção nos jogos da Seleção. As aulas no curso de pós-graduação eram elas todas muito sofridas.

               - Puts-grilla, que dor! – Queixava-se sempre aos colegas, aqueles mais chegados, se contorcendo sobre a cadeira, na sala de aula da faculdade.

               Mas era muito impetuoso. Aulas manhã e tarde, à noite leituras e realização de trabalhos escritos na máquina Remington portátil amarelo-ovo, presente de seu irmão teatrólogo: tinha muito carinho por ela! O estralar de suas teclas ecoavam à noite inteira.  Tudo precisava estar pronto já na manhã seguinte. De dia os comprimidos enganavam a dor, de noite o álcool fazia isso. Enquanto trabalhava, bebia: um celular por noite, cheio da amarelinha; não gostava da branquinha.

               - Se não for assim, não durmo. Passa um turbilhão de letras e cobrinhas na minha cabeça – confidenciava, às vezes, aos amigos.

               Na madrugada daquela segunda-feira passara mal. Por isso, logo nas primeiras horas já estava de pé, às claras, na cozinha preparando o café. O sol ainda nem bem havia surgido por trás dos prédios do conjunto de apartamentos onde morava com a família, já estava pronto para ir à faculdade, mas não suportou. Sentindo dores horríveis, foi levado de táxi por sua mulher ao hospital. Lá, quase de cócoras foi levado à presença de um médico. Foi atendido primeiro por um médico residente, que inseguro chamou outros dois colegas, um interno como ele e um cirurgião, este com larga experiência.

               - Apendicite! - Sentenciou o médico-cirurgião, enterrando o dedo em meu abdome para retirá-lo logo em seguida com violência. Era apenas o procedimento. Quase se mijou de dor! Naquela segunda-feira sentiu o fim de tudo mais próximo. Tudo estava mofo, parecia feder.

                Depois de quase oito horas na sala de cirurgia, acordou crente de que havia morrido.

               - Caraaamba! O que ocorreu comigo? – se perguntou, olhando as muitas camas ao seu redor.

               O quarto parecia tudo, menos um quarto. Muitas camas, muitas pessoas estendidas nelas, todas vestindo o mesmo modelito. Algumas mulheres transitavam de cama em cama, usavam máscaras, aventais cinza, chinelos de pano e gorro na cabeça. Ao lado de cada cama, uma garrafa plástica pendurada de, somente depois ficou sabendo, soro! Seu olhar, quase sem brilho, foi para o lado, acompanhando uma voz feminina, que como um trovão lhe chegava ao ouvido.

               - Este aqui já está pronto, Rafael, pode levá-lo.

               Rafael era um rapaz ainda muito jovem; vestindo o mesmo modelito das mulheres; que acabara de adentrar.

               - Para o necrotério, a família já esta lá – ordenou a mulher quase em tom debochado.

               “Necrotéeerio! Ele está mooorto!” – compreendeu tudo. “E eu?... ”Tentou movimentar os dedos dos pés... não deu. Braços, pernas, não sentia nada: “Estou morto?” – apavorou-se.

                - Vá com cuidado, aos poucos você vai se sentir melhor, tudo volta ao normal – disse a mulher enxergando-me lá da porta do banheiro, por cima dos óculos lentes fundo-de-garrafa envoltas em  aros cor-de-rosa.

               E completou:

                - O efeito da anestesia não dura muito. Daqui a pouco vão levar você para o quarto.

               Um grande alívio invadiu seu corpo inteiro. Teria pelo a chance de se despedir de sua família.

               De fato, alguns minutos depois foi levado para um quarto, onde sua mulher o esperava. A todo instante chegava alguém para avaliar suas condições físicas. Enfermeiras, auxiliares de enfermagem... só na manhã do dia seguinte, na terça-feira, veio médico:

               - Você me deu muito trabalho – reclamou em tom de brincadeira. Estava só a lama lá dentro – acrescentou, certamente para dar a dimensão da gravidade da intervenção que foi obrigado a fazer.

               Quando caiu a segunda noite, sufoco, correria... as coisas não estavam bem. A enfermeira entrou, tomou o pulso, verificou a pressão e saiu apressada. “O que será que aconteceu?” – pensou, estava agoniado. Sua mulher, de pé a seu lado, tentava disfarçar a apreensão que sentia

               Veio médico, não o que operou. O médico do plantão. Falou baixinho para a enfermeira, observou, analisou... e para mim:

               - Está sentindo alguma coisa? – quis saber.

               - Não.

               Minutos depois a enfermeira voltou. Comprimidos, injeção... toma de pulso...

               - Está se sentindo bem? – insistiu.

               - Sim, mas por quê? está acontecendo algo comigo?

               - Nada, apenas um susto. Sua pressão de repente ficou muito alta, isso no período pós-operatório pode ser perigoso.

               E esboçando um sorriso amarelo, como dizemos nestes casos, virou-se e encaminhou-se para a porta de saída, carregando nas mãos uma bandeja com remédios.

               Seis dias depois recebeu alta médica. O tempo passou, retornou às atividades de professor, mas não esqueceu o que passara no pré-operatório. Como poderia esquecer aqueles momentos de terrível vergonha por que passara quando as auxiliares de enfermagem, todas meninas muito novas e lindas, raspavam seus pelos pubianos? E depois da cirurgia, quando para fazerem a assepsia nos pontos da cirurgia, suspendiam totalmente o avental?!

               - Jamais me senti tão incomodado! Arrancaram-me a calça, depois a cueca, rasparam meus pentelhos... buliam em meu pênis, colocando-o para um lado e para o outro, uma loucura! – comentava com os amigos – E se de repente não suportasse e tivesse uma ereção, já pensou?!

               - Ali, naquelas condições é impossível –, tranquilizavam-no os colegas –,ali só da pra pensar em ficar bom, rapaz.

               À noite, quando cansado do trabalho fatigante do dia, encostava a cabeça no travesseiro para dormir e descansar, não era incomum ter pesadelos terríveis. E quando teve que corrigir um problema no olho direito, que lhe estava impedindo de ler...

               - Ah! Essa não...

               Desta vez tudo começou quando resolvera, por necessidade ímpar, sempre fora assim, ir ao médico oftalmologista.

               - Vamos retirar essa carne sim, de cima de seu olho. Mas em virtude de sua idade, só para garantir que tudo vai sair bem, o senhor vai me trazer um parecer de um médico cardiologista. 

               - Esses médicos são doidos – disse à mulher -, vou operar o olho e o oftalmologista me manda para o cardiologista!

               - Bem feito! Você só vai ao médico quando já está pra morrer – brigou ela –, agora vê se aproveita e faz um checape geral.

               No consultório do cardiologista:

               - O senhor tem problemas nas duas válvulas do coração – sentenciou logo de cara.

               - Puts-grilla! o cara é louco! Nem me examinou direito e faz um estrago desses em minha cabeça! – exclamou já de volta para casa, à mulher.

               - Ele sabe o que faz. – disse ela, tentando tranquiliza-lo.

               Os dias que se seguiram peregrinou por laboratórios, consultórios, órios e mais órios. Todos os órios da vida. E foi um tal de andar em esteiras, furar o braço, furar mais braço... fazer xixi em canequinho, fezes... laboratórios e mais laboratórios. Tudo pronto... de volta ao médico: a sentença.

               - O senhor tem diabetes, está com anemia, pressão muito alta. Vou internar o senhor para fazermos um cateterismo.

               Parecia brincadeira, mas ia começar tudo de novo.

 

caveira

 

Página 37 

 

                Irapuã era mais conhecido como Abelhudo, nunca se soube exatamente por que. Havia quem dissesse que era índio, um daqueles personagens criados por João Guimarães Rosa em “Meu tio o Iauaretê”. Não gostava de tempo nublado. Reclamava sempre quando isso acontecia. Principalmente no domingo, dia de coroa e futebol no Parnaíba. “Gosto de minha cidade amarelinha, douradinha. Se gostasse de tempo fechado ia morar em Londres”, falava aos amigos assim, arrastando um carioquês horrível sempre que o dia amanhecia nublado. O dia estava nublado naquela terça-feira. Prenúncio de uma chuva esperada por muitos, mas que nunca vinha. Para desespero dos hortifrutigranjeiros do Itararé e de todos aqueles que gostavam do frio.

               Na verdade era índio coisa nenhuma. Ninguém sabia exatamente o porquê do apelido, nem se parecia com um índio! Acho que era porque morava sozinho.

               Sem nada agendado para aquela terça-feira, assim como em quase todas as outras, preparava-se para ir ao bar de Seu Zezinho, no Mercado Central, jogar conversa fora. Policial aposentado, rejeitado pela academia, queria ser investigador de polícia, vivia se metendo em confusão por isso, a mania de querer ser detetive. Assim como o Quixote, o Índio Abelhudo era vidrado em novelas de cavalaria e em filmes policiais. No bar de Seu Zezinho podia entornar umas e afogar as mágoas da profissão, que ele achava que tinha. O Mercado Central era o lugar onde comprava a carne de suínos, por ele muito apreciada.

               Quando já girava a chave na fechadura para abrir a porta e sair... tocou o telefone. “Quem será?!”, resmungou. Era sua amiga Naná. Estava aflita. Os dois haviam se conhecido na escola, onde o Abelhudo era professor. Sim senhor, depois de aposentado na Polícia Militar, rejeitado pela academia depolícia civil, virado bebedor de pinga no bar de Seu Zezinho, tornara-se professor de Português na rede municipal. “Você me disse uma vez que tinha o tino de detetive, pois agora você pode me ajudar, por favor! Estou aqui no Centro de Formação” falou quase em prantos, a amiga. Índio Abelhudo pediu a ela que o aguardasse, que já estava chegando.

               Um caso de verdade! ele vibrou com o convite, ao bater o telefone.

               Naná o recebeu na portaria, aflita, agitada. Quase desesperada. Uma senhora beirando os quarenta anos, professora de Português, como o amigo. Era a professora formadora de Língua Portuguesa.

               - O que aconteceu? - foi logo perguntando.

               Naná o puxou para dentro de uma sala, trancou a porta e relatou a história. A história do desaparecimento de seu livro.

                No dia seguinte daria uma palestra abordando o assunto Foco Narrativo nos Contos de Enigmas, baseada naquele livro, explicou.

                - Quando vou procurá-lo, cadê? Sumiu! – disse levantando os ombros.

               - E você acha que o roubaram de você? - interessou-se o Abelhudo.

               - Creio que sim.

               - Por quê?

               - É um livro difícil de ser adquirido. Aqui na cidade não tem mais nas livrarias.

               - Ora veja só, Roberto Carlos cantou a história do roubo de um coração; Conan Doyle contou a história do Roubo da Coroa de Berilos, mas roubar um livro? Quem faria isso? Por que faria isso? Mistério!!!

               - Não brinque comigo, por favor.  A coisa é séria. O que faço agora? Não tenho outro nem sei quem possui outro exemplar – falou desiludida.

               - Que livro é esse? – quis saber mais o “detetive”.

               - O Foco Narrativo, da Ligia Chiappini. Um livro interessantíssimo que comprei há alguns anos.

               - Suspeita de alguém, alguém demonstrou interesse em tê-lo nesses últimos dias? – perguntou, anotando algo no caderninho. Tinha caderninho sim, bloquinho de anotações.

               - Na sala tem um professor com quem tive uma discussão sobre esse assunto. Poderia ter sido ele. Mas em que momento? Ele não tem acesso à minha sala!

               Nesse momento batem à porta. Era a faxineira, mulher jovem, branca, bonita, cabelos escondidos por um pano amarrado, parecia estar incomodada com alguma coisa.

               - Tenho que limpar a sala - disse de cabeça baixa.

               Os dois continuaram a conversar.

               - De quem mais você desconfia?

               - Também tem minha companheira Sara, como eu: professora formadora na mesma turma.

               - Sara... Sara... Hum! Lembrei... Eu tinha uma vaquinha que se chamava Sara Lee... Quem é Sara Lee? – perguntou em tom de gozação, mas anotou seu nome no bloquinho.

               - E eu sei lá quem é Sara Lee!... 

               - É apenas um nome citado em uma música antiga, que gostava de ouvir. 

               - Sara, a minha companheira, tem acesso a aqui, à minha sala, estudamos às vezes juntas.

               - Você acha que foi ela? 

               - Sara nega que foi, ficou inclusive aborrecida comigo, quando perguntei. 

               - Por que não deixou isso para mim, você não sabe investigar. 

               - E eu espero que você saiba o que vai fazer... 

               De repente, levantando-se e olhando fixamente para a faxineira, perguntou:

               - Ei, a senhora aí, parece-me amedrontada. O que há?

               - É nada não. Ouvi vocês falarem o nome da professora Sara, tão procurando por ela? 

               - Não! – respondeu Abelhudo tentando disfarçar. Por quê? 

               - Procuram por alguma coisa? – voltou a perguntar a faxineira.

               - Nada de muito importante – respondeu a professora, despistando. 

               - Um livro - disse Irapuã - Você sabe de alguma coisa?

               - Não, senhor.

               Irapuã informou o nome do livro e ouviu de Naná que a moça era estudante de Letras numa faculdade particular. Era pobre, trabalhava de faxineira para cobrir as despesas do curso. 

               - Eu tenho um exemplar desse livro, um amigo trouxe para mim de São Paulo há alguns dias atrás.

               - Se você diz “há alguns dias”, não precisa dizer “atrás”, estudante de Letras!... Observou Naná, balançando negativamente a cabeça. 

               - Você faz sempre a limpeza aqui da sala? – perguntou o Abelhudo, em tom de desconfiança. 

               - Sim senhor, só não ontem, que a professora Sara estava gripada e não deixou.

                Irapuã dispensou a faxineira e, levantando as sobrancelhas, exclamou: 

               - Vou falar com essa professora, agora!

               Sara estava sentada numa cadeira, ao redor de uma mesinha, no refeitório, estudando. Aprontava o material da aula da quarta-feira seguinte, enquanto esperava um lanche.

               - Sara Lee? É a professora Sara Lee? – perguntou Abelhudo à professora.

               - Não, somente Sara – respondeu, levantando os olhos. E o senhor, quem é? 

               - Chamam-me Abelhudo, mas meu nome mesmo é Irapuã, sou amigo de Naná, sua colega.

               - O que houve? – perguntou, convidando-o a sentar.

               - Sara, você sabe que roubaram um livro muito precioso da Naná, não sabe?

               - Sim, fiquei sabendo. Mas já disse a ela que não fui eu. E corrigindo, não roubaram. Ele desapareceu.

               - Incrível – disse com ironia - esse sujeito ele é o responsável por tudo de ruim que acontece no mundo. 

               - Quem? – perguntou assustada. 

               - Furaram o pneu do carro do Prefeito, quem furou?... o Não Fui Eu; a ponte caiu, quem a derrubou?... Não Fui Eu... 

               - O que o senhor está querendo dizer com isso? – perguntou Sara, demonstrando certa irritação. 

               - Você tem um exemplar desse livro?

               - Sim, mas não é o dela, eu juro. 

               A conversa se esgotou por ali mesmo. Irapuã retornou para a sala de Naná. Os dois reviraram juntos todos os objetos da sala. Nada encontraram.

               - Foi roubado! – disse Naná, já desiludida.

               Três horas da tarde, os dois já muito cansados, fatigados.  Naná sentada em um sofá velho, Abelhudo com a cabeça deitada sobre os braços sobre a escrivaninha.

               De repente, Com a impressão de que acordava de um sonho difícil, de repente, Abelhudo, como se tivesse se lembrado de algo, pediu para a colega chamar todos que no Centro de Formação possuíssem um exemplar do livro, que todos trouxessem os livros, ele iria examiná-los um a um.

               Naná convidou a todos eles e, sabendo que também Graziela era dona de um, também mandou chamá-la. Por solicitação do Abelhudo, o professor que discutiu com ela foi chamado e também estava lá, com seu exemplar debaixo do braço. 

               - O meu, comprei ontem par trazer para a aula de amanhã – foi logo dizendo, colocando logo em seguida o livro sobre a mesa, assim como todos haviam feito.

               Livros sobre a mesa, Abelhudo os folheou detidamente. Depois os colocou de volta sobre a mesa, frisando que já eram 18:00h e que todos ali estavam cansados 

               - Vocês afirmam que nenhum desses livros aqui é o de Naná? – perguntou olhando fixamente nos olhos de cada um.

               Todos responderam de pronto que sim.

               - Obrigado a todos. Na verdade, já descobri com quem está o livro. 

               Irapuã, então, já com a camisa quase totalmente desabotoada, foi pegando um por um e devolvendo a seus donos. 

               Professor, o seu não é. A nota fiscal está dentro. De fato o senhor o comprou ontem. Graziela, o seu também não. A sua assinatura no livro está bem desgastada. Já há algum tempo que você o comprou. 

               Restaram Sara, e a faxineira, que se encolhia em um canto da sala. 

               - E então, qual dos dois é o meu? – quis saber logo, Naná.

               - Seu livro quem o pegou foi Sara. 

               - Eeeeeeeu?! Baseado em que o senhor afirma isso? Eu não preciso desse tipo de coisa. 

               - Comecei a desconfiar quando a faxineira disse que ontem você não permitiu que ela fizesse a limpeza da sala, alegando estar gripada. Mas você não está gripada. 

               - Naná - disse Irapuã, voltando-se para a amiga. - Lembra de quando você foi lá à escola? Enquanto você tentava me explicar as razões de terem surrupiado do meu salário cento e sessenta e seis reais, eu folheava um dos livros que você havia levado consigo e vi que você assina seu nome sempre na página 37.

               Abrindo o livro que Sara havia trazido, mostrou a página 37, onde estava escrito

 

Naná, em 13/12/2009.

 

 

                                     ( caricaturas do piauiense Joaquim Monteiro)